Soul, o capitalismo e os comentários do Facebook

Luiz Lianza
7 min readJan 10, 2021
Imagem do filme Soul (2020, Pixar)

Às vezes, eu lembro de que vale a pena escrever sobre as coisas e, como não sei bem onde por, escrevo aqui. Pois bem, recentemente deparei-me com uma razoavelmente exagerada crítica de Soul, filme da Pixar lançado esse ano no Disney Plus, em que a autora entendia que o filme derrubava um dos principais pilares do capitalismo e das religiões. É claro, dado o leve exagero feito para te chamar atenção para a crítica, os argumentos são bons e eu concordo com a linha geral de que Soul contraria uma base do capitalismo e de algumas religiões Ocidentais, o que dá, mais ou menos, no mesmo. Afinal, um herdou a ideia de missão do outro.

Agora, até é sobre as bases do capitalismo e as religiões que eu quero falar, mas não tanto sobre Soul. Pois bem, vamos a segunda parte da minha história, eu vi essa matéria na linha do tempo do meu Facebook e, nela, vi os comentários da postagem, feitas por, possíveis, leitores do jornal O Estadão, em que a crítica foi veiculada. Lá, uma briga infindável acontecia. Capitalismo versus comunismo ou capitalismo versus qualquer outra coisa que passou a ser comunismo dali em diante. Eram dezenas de postagens debochadas ou nervosas defendendo ou atacando a chamada da matéria, cada uma das postagens com mais de cem respostas. Em algum momento, é claro, a briga se tornava uma série de gifs e ofensas gratuitas; entretanto, até a metade, a briga era baseada em argumentos.

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Os argumentos não eram bons, honestamente. Nenhum dos dois lados parecia saber bem do que tava falando; mas não vou ser cruel, porque são temas difíceis; e pouca gente pode, de fato, bater o pé e dizer que sabe do que tá falando quando fala de capitalismo e comunismo. Eu mesmo não sou um deles, mas gosto de usar o pouco que sei para navegar com alguma sabedoria nesse mar. Vou exemplificar, via de regra, o que diziam de ambos os lados aqui.

A favor do capitalismo diziam:

- O capitalismo lhe permite ser o que quiser. Você tem liberdade para escolher o seu caminho.

- O capitalismo abre espaço para a criatividade e inovação, surgem profissões, tecnologias, artes, etc.

- O comunismo iguala a todos em termos monetários e tira a competitividade das pessoas.

- O comunismo criminaliza os que não pensam igual, perseguem as novidades e os inovadores.

Contra o capitalismo ou críticos de alguma maneira diziam:

- O capitalismo gerou a pobreza.

- O capitalismo é injusto e o mérito é falso.

- Nações chamadas comunistas não são comunistas, são totalitárias.

É claro, isso resume um bocado o que era repetido de diversas maneiras por muitas pessoas diferentes. Agora vamos a minha primeira percepção desse debate. Ele me parece ser o que seria uma rede social em plena Guerra Fria na Crise dos Mísseis, ponto alto das ameaças. Ninguém ali tá ligando para o que é capitalismo ou comunismo, mas para o que representou o projeto dos EUA e o projeto da URSS no século XX.

Com todos os defeitos e qualidades, há de se concordar que os tons de cinza não são bem vistos em tempos de guerra ideológica. É algo que, pessoalmente, acho natural para quem viveu a iminência de uma guerra nuclear e temia o fim do seu estilo de vida. Ainda que seu estilo de vida estivesse longe de ser o ideal. O que me leva a crer que essas pessoas estão completamente fora dos seus tempos (ou não, mas entro nisso depois).

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Ao capitalismo. O sistema nasceu da acumulação de capital dos comerciantes, que em dado momento suplantaram os poderes baseados na tradição e implantaram um sistema pautado por uma lógica racional. A lógica racional envolve alguns princípios básicos; a lei é igual para todos, os bens são do seu núcleo familiar, portanto não podem ser expropriadas, mas podem ser herdadas; os cargos são distribuídos por capacidade de exercer o ofício e não por posição em extrato social.

Ao comunismo. O sistema, em teoria, nunca existiu na prática. Envolve uma sociedade sem Estado em que cada indivíduo atua pelo bem comum. Todos tem acesso a tudo o que é produzido pelos humanos e ninguém ou nenhuma classe controla ou circunscreve poderes dentro da sociedade. O sistema na prática veio com uma série de políticas sociais redistributiva e um alto controle do Estado que era ocupado por antigos membros partidários, vários advindos das classes trabalhadoras. Pessoalmente, eu prefiro chamar esses Estados de socialistas, que era a idéia de um governo temporário em que os trabalhadores fariam uma espécie de ditadura até que a população estivesse pronta para o comunismo.

Vamos aos tons de cinza. Ainda durante o século XX houve uma tremenda quantidade de perseguição política nos EUA, talvez o mais famoso seja o Macartismo, em que pessoas que pensavam diferente do governo eram taxadas de comunistas, portanto inimigas do Estado e presas (recomendo assistir Trumbo, filme sobre o roteirista comunista Dalton Trumbo; e sobre essa perseguição). Enquanto isso, na URSS houve uma tremenda quantidade de inovação em todos os sentidos, artísticos, profissionais, científicos, tecnológicos.

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Por outro lado, em nações comunistas houve um rígido controle da vida das pessoas, como quem pode morar onde. Achar que não há controle nos países capitalistas é igualmente ingenuidade, via empréstimos, subsídios e burocracia, o Estado controla os negócios e os mercados, portanto os trabalhos. Estados menos interventores, em geral, não conseguiram empresas tão competitivas no meio internacional. Ainda, quando os Estados deixam de intervir, mesmos os grandes como Alemanha ou EUA, tendeu-se a formação de oligopólios e monopólios, o que é uma outra forma de controle da capacidade de inovação, mas no meio privado. Ainda, em um mercado em bom funcionamento, a isomorfia do meio empresarial cria uma tendência à homogeneidade. Liberdade , afinal, não é o forte da sociedade…

Outro ponto importante é ressaltar que existiu pobreza nas nações comunistas e a pobreza é anterior ao capitalismo, mas ela tinha outros nomes, rostos e era naturalizada em uma sociedade de castas. Talvez, o grande ponto de países como Cuba foi conseguir reduzir a desigualdade e garantir acesso a todos ao essencial, como saúde, educação e segurança. Eu não sei vocês, mas eu acho isso importantíssimo. Isso não quer dizer que Cuba é maravilhosa, há controle, há pobreza e há gente tentando fugir. Entre Estados e modelos de governo não há bonzinho, certo ou errado.

Em uma postagens, uma das pessoas alegou que os “comunistas” deveriam deixar de ideologia e aderir a realpolitik. Eu, como fã de estadistas, não deixei de me maravilhar no capítulo sobre o Bismarck escrito por Kissinger em Diplomacy. Posso dizer que realpolitik tem mais a ver com análise fria dos instrumentos políticos e atos calculados em uma direção consciente que com capitalismo. Esse tipo de ação aconteceu em todo tipo de governo, bastou um estadista com visão do jogo político e agência. Se a meta é o comunismo, é uma questão de agir entendendo as forças em jogo em direção a isso, pronto.

Na verdade, realpolitik é tudo menos o que eles não vêem. A doutrina de Bismarck envolvia a compreensão de um equilíbrio de forças na Europa, o que levou a um longo período de paz armada. Quando os alemães dão início à weltpolitik e acreditaram que seriam capazes de ampliar a influência alemã baseada em uma sensação de merecimento histórico, houve a Primeira Guerra Mundial e eles saíram dela quebrados! Isso tudo ocorreu em uma nação capitalista, tanto antes, quanto depois.

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A realidade é que entre o capitalismo e o comunismo há uma infinidade de teorias e processos históricos que dependentes de vasta interpretação antes de fazer qualquer juízo de valor. Quando alguém aparece defendendo o trabalhador, essa pessoa pode estar, muito bem, fazendo isso nas bases dos capitalismo. Como quando um sindicato opera um maior controle do mercado de trabalho para valorizar o valor da categoria e melhorar a negociação salarial. Pode estar fazendo sob os auspícios do comunismo, buscando uma sociedade mais igualitária e livre.

Agora vem o complicado. Por que as pessoas estão debatendo como se elas tivesse sido educada na década de 1960? Não sei, mas imagino! Esses tantos anos que enveredamos por grupos e subgrupos na internet e a forma como nossa educação está aquém da necessidade, as pessoas foram crescendo sem instrumentos para filtrar e ponderar a infinitude de informações que existem na internet. Grupos interessados vão formando uma rede que reafirmam crenças e as difundem formando verdades. Essa gente precisa criar um inimigo para existir e para justificar certo grau de alienação; ou seja, manter o indivíduo distante de pensamentos distintos. Um bom inimigo é o comunismo e o ferramental tá todo desenvolvido no século XX.

Esse debate infindável e acalorado é resultado de processos de disputas que acontecem onde a educação falhou. São disputas de narrativas sobre o mundo. Quem vencer essa disputa, vence o projeto de poder. Demos pouca bola para esses grupos, por anos foram chamados de alienados e ridicularizados. Lembro-me bem da chacota que era Olavo de Carvalho e como Bolsonaro era ignorado por ser um parlamentar do baixo clero dos mais toscos. Pois bem, naquela época nunca imaginaríamos como estaria o Brasil hoje e quão baixo estaria o debate. Não sei se há salvação, mas quero crer que sim. Essa virá pela educação e após longos anos.

Retomando Soul. O filme é bonito, mas pouco tem a ver com a derrocada do capitalismo. Falar do fim do propósito é uma crítica clara ao Destino Manifesto, mas nada de novo. O capitalismo é famoso por se auto-profanar em tantas formas que se torna improfanável. A prova disso? Essa crítica veio em um grande produto de uma das maiores empresas capitalistas do mundo…

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Luiz Lianza

Data scientist, sociologist, and, sometimes, writer.